sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Instruções para Salvar o Mundo - Rosa Montero -



Num cenário de subúrbio, onde a noite reclama o seu território e os fantasmas reivindicam o seu espaço, um taxista viúvo que não consegue superar a perda da mulher, um médico desiludido, uma cientista anciã e uma belíssima prostituta africana sedenta de vida cruzam os seus caminhos, para nos obsequiarem com uma visita guiada ao mundo vertiginoso e convulso que cada um encerra dentro de si.
Mas esta não é uma história de horrores, é antes uma fábula de sobreviventes, de quatro personagens que reúnem todos os elementos necessários para serem considerados uns desgraçados, que se movem nos mundos limítrofes à máfia, ao tráfico de mulheres brancas, e a universos virtuais como Second Life, mas que conseguem encontrar um apoio que lhes permite a remição e a saída das trevas que os mantinham prisioneiros.

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Por vezes penso que devia parar de ler livros que constantemente me recordam o caos social, a ignorância e pobreza de espírito das pessoas. E devia. É necessário sair desta constante e doentia realidade. Fazer um intervalo, pelo menos nos livros.
“Instruções para salvar o mundo” não muda nada mas denuncia e demonstra. Aquilo que já sabemos é certo, que o ser humano regrediu, se tornou malvado e maquiavélico, “desevoluiu” dos ancestrais primatas. Certamente é mais fácil ser mau do que bom, de outra forma a humanidade seria uma onda perfeita de bondade. Mas a verdade verdadinha é que estamos sós, cada vez mais sós e medrosos, desconfiados e rodeados de conhecidos, mas sem amigos.
São quatro as personagens centrais deste livro. Todas com vidas dolorosas, experiências de tristeza e desilusão. Quando a dor começa e toma conta de tudo é difícil manter a cabeça à tona, então o percurso é descendente, o sofrimento tolda a visão, e uma série de acontecimentos aleatórios coloca Matias, Daniel, Fatma e Cérebro envolvidos em situações bizarras. Daí a perder-se o controlo e a noção da lógica é um pequeno passo numa espiral para o abismo.
Adorei a escrita de Rosa Montero, crua, incisiva e sem “paninhos quentes”. Explora sentimentos de vidas frustradas, dos azares que magoam e marcam novos percursos, a forma quase científica como faz pensar nas coincidências, que realmente fazem parte do nosso dia-a-dia e têm um papel determinante em algumas decisões irreversíveis. Um romance urbano em que em cada página se sente a frieza de uma selva de pedra, a solidão de ter dezenas de vizinhos por todos os lados das casas e sentir que se vive numa caverna isolada.
Um livro cheio de infelicidade e com pouca esperança como cada vez mais achamos que é a vida. Não me deixou feliz e deu-me uma injecção de realidade que me doeu e deixou danos colaterais. A nossa sociedade é podre e doente. O ser humano assim quis.
“A Humanidade divide-se entre aqueles que gostam de se meter na cama à noite e aqueles a quem ir dormir desassossega. Os primeiros consideram que os seus leitos são ninhos protectores, enquanto os segundos sentem qua a nudez do dormitar é um perigo. Para uns o momento de deitar implica a suspensão das preocupações; aos outros, pelo contrário, as trevas provocam um alvoroço de pensamentos daninhos e, se fosse por eles, dormiriam de dia, como os vampiros. Sentiste alguma vez o terror das noites, a angústia dos pesadelos, a escuridão a sussurrar-te na nuca com o seu hálito frio que, embora não saibas o tempo que te resta, não passas de um condenado à morte? E, no entanto, na manhã seguinte a vida volta a explodir com a sua alegre mentira de eternidade.” (Pág. 7)
“Circulou lentamente ao longo da franja fronteiriça do território bárbaro e chegou à passagem subterrânea sob os carris da via férrea, um túnel estreito inconcebivelmente sujo entre cujos detritos de latas esmagadas, cadáveres de ratazanas e indiscerníveis farrapos se podiam encontrar inúmeros documentos pessoais, cartões de piscinas municipais ou de clubes de vídeo, porta-moedas abertos e carteiras de senhora estripadas, uma avalancha de restos descartados por uma legião de ladrões. E aí, justamente à saída do túnel, leu um grafitti que dizia: A vingança far-te-á livre. Ao fundo voltava a ver-se a linha reluzente da cidade, com o seu sonho de luxuosos arranha-céus e o seu pesadelo ameaçador de sujidade e miséria.” (Pág. 45)
“E agora estava encalhado num terreno remoto, sem filhos, sem sucesso profissional, sem verdadeiros amigos, sem amor. A lembrança de Fatma e de Marina cruzou-lhe o pensamento e o corpo doeu-lhe. Porque a tristeza doía fisicamente. Era um mal-estar difuso, oco e surdo, que se sentia nos joelhos, nos cotovelos, na nuca, no esterno. A tristeza era como um ataque de reumatismo, um lento tormento que chegava a parecer insuportável (…) Tinha a sensação de estar a perder o controlo a uma velocidade vertiginosa. De estar a destruir a sua vida cada dia um pouco mais. As articulações voltaram a doer-lhe. Era um sofrimento fantasmagórico, intolerável. Desejava embrutecer-se, anestesiar-se, perder a consciência, esquecer-se de tudo. Dormir eternamente e fugir de si próprio.” (Pág. 174)                                                                                    ( http://planetamarcia.blogs.sapo.pt/593693.html )


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Como tudo o mais na vida, este título pode enganar os desavisados. Instruções para salvar o mundo não é a estreia de Rosa Montero no gênero da auto-ajuda, embora no fundo todo livro possua a capacidade de provocar nos leitores uma espécie de metamorfose — inclusive os romances. E este romance ressoa numa vibração muito fina, a um só tempo uma promessa sussurrada ao pé do ouvido e um choque de realidade.                                   ( http://www.saraiva.com.br/instrucoes-para-salvar-o-mundo-3441693.html )

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